"Se o ensino é superior, a pessoa que o abraça é digna de respeito. Assim sendo, desprezar essa pessoa é o mesmo que desprezar o próprio ensino. Isto é comparável a atitude de censurar uma criança, cujo ato é ao mesmo tempo uma censura aos pais. "
( Nitiren Daishonin )

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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A vida é um eterno amanhã de João Ubaldo Ribeiro

Texto: A vida é um eterno amanhã de João Ubaldo Ribeiro Extraído do livro Um brasileiro em Berlim, 1995.

As traduções são mais complexas do que se imagina. Não me refiro a locuções, expressões idiomáticas, palavras de gírias, flexões verbais, declinações e coisas assim. Isto dá para se resolvido de uma maneira ou de outra, se bem que, muitas vezes, à custa de intenso sofrimento por parte do tradutor. Refiro-me à possibilidade de encontrar equivalências entre palavras aparentemente sinônimas, unívocas e univalentes. Por exemplo, um alemão que saiba português responderá sem hesitação que a palavra portuguesa “amanhã” que dizer “morgen”. Mas coitado do alemão eu vá para o Brasil acreditado que, quando um brasileiro diz “amanhã”, está realmente querendo dizer “morgen”. Raramente está. “Amanhã” é uma palavra riquíssima e tenho certeza de que, se o grande Duden fosse brasileiro, pelo menos um volume seria dedicado a ela e outras, que partilham da mesma condição.
“Amanhã” significa, entre outras coisas, “nunca”, “talvez”, “vou pensar”, “vou desaparecer”, “procure outro”, “não quero”, “no próximo ano”, “assim que eu precisar”, “um dia destes”, “vamos mudar de assunto”, etc. e, em casos excepcionalíssimos, “amanhã” mesmo. Qualquer estrangeiro que tenha vivido no Brasil sabe que são necessários vários anos de treinamento para distinguir qual o sentido pretendido pelo interlocutor brasileiro, quando ele responde, com a  habitual cordialidade nonchalante, que fará tal ou qual coisa amanhã. O caso dos alemães é, seguramente, o mais grave. Não disponho de estatísticas confiáveis, mais tenho certeza de que nove em cada dez alemães que procuram ajuda médica no Brasil o fazem por causa de “amanhãs” casuais que o levam, no mínimo,  a um colapso nervoso, apara grande espanto de seus amigos brasileiros – esses alemães são uns loucos, é o que qualquer um dirá.
A culpa é um pouco dos alemães, que, vamos ver admitir alimentam um numero excessivo de certezas sobre esta vida incerta, úmero quase tão grande como a quantidade exasperante de preposições que enfrentam sua língua ( estou estudando “auf” e “au” no momento, e não estou entendendo nada). São o contrario dos brasileiros, a maior parte dos quais não tem a menor ideia do que estará fazendo na próxima meia hora, quanto mais amanhã.
Talvez tudo se reduza a uma questão filosófica sobre a imanência do ser, o devenir, o principio da identidade e outros assuntos dos quais fingimos entender, em coquetéis desagradáveis em que mentimos a respeito de nossas leituras e nossos tempos de faculdade. No plano pratico, contudo, a coisa fica gravíssima. Se o Brasil tivesse fronteiras com a Alemanha, não digo uma guerra, mas algumas escaramuças já teriam eclodido, com toda a certeza – e a Alemanha perderia, notadamente porque o Brasil não compareceria às batalhas no horário previsto, confundiria terça-feira com sexta-feira, deixaria tudo para amanhã, falsificaria a assinatura oficial no documento de rendição, receberia Wehrmacht com batucadas nos momentos mais inadequados e estragaria tudo organizando almoços às seis horas da tarde.
Falo por experiência própria. Whe in Rome do as the romans, ditado que deve ter uma versão latina mais chique, mas, infelizmente, não disponho aqui de meus livros de citações, para dar impressão aos leitores de que leio Ovídio e Horácio no original. Mas, em inglês ou em latim, acho esse pensamento de grande sabedoria e procuro segui-lo à risca, na minha atual condição de berlinense, tanto por tarje ou por maneiras, dos outros berlinenses bebericando uma cervejinha ali na Adenauerplatz.

Fica tudo, porem, muito difícil em certas ocasiões, como hoje mesmo. O telefone tocou, atendi, falou um alemão simpático e cerimonioso do outro lado, querendo saber se eu estaria livre para uma palestra  no dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20h30. Sei que é difícil para um alemão compreender que esse tipo de pergunta é ininteligível para um brasileiro. Como alguém pode marcar uma coisa com tanta precisão e antecedência, esses alemães são uns loucos. Mas não quis ser indelicado e, como sempre, recorri a minha mulher.
- Mulher – disse eu, depois de pedir que o telefonador esperasse um bocadinho. – Eu tenho algum compromisso para o dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20h30.
- Você está maluco? – disse ela. – Quem é que pode responder a esse tipo de pergunta?
- Eu sei, mas tem um alemão aqui querendo uma resposta.
- Diga a ele que você responde amanhã.
- E quando ele telefonar amanhã? Ele é alemão, ele vai telefonar amanhã, ele não sabe o que quer dizer amanhã.
- Ah, esses alemães são uns loucos. Você é escritor, invente uma resposta poética, diz a ele que a vida é um eterno amanhã.
Achei uma ideia interessante, mas não a usei, apenas disse que ele telefonasse amanhã. Mas claro que não sei o que dizer amanhã e fui dormir preocupado, tanto assim que ainda incomodei minha mulher com uma cotovelada. Afinal, os alemães são organizados, é uma vergonha a gente não poder planejar as coisas tão bem quanto eles. Que é que eu faço?
- Ora – respondeu ela, retribuindo a cotovelada -, pergunte  a ele se os alemães planejaram a reunificação para agora. E, se for berlinense, pergunte se ele não preferia deixa-la para amanhã.
- Touché – disse eu, puxando o cobertor para cobrir a cebeça e resolvendo que amanhã pensaria no assunto.








Marcinh♥

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