"Se o ensino é superior, a pessoa que o abraça é digna de respeito. Assim sendo, desprezar essa pessoa é o mesmo que desprezar o próprio ensino. Isto é comparável a atitude de censurar uma criança, cujo ato é ao mesmo tempo uma censura aos pais. "
( Nitiren Daishonin )

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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A aventura dos crótons de Astrid Cabral

A aventura dos crótons
Cresciam os crótons sob o sol cru, vermelhos como cristais. Maio era vindouro, prometendo amenidades e um céu varrido. Por enquanto o mormaço invadia os muros e desafiava as sombras, densas sob a copa das altas mangueiras, mas não de arbustos como os crótons. Deliciavam-se, porém, com o calor e a luz, tão rosados e brilhantes os tornava o sol, as folhas recortadas em cetim de fortes tons.
Longe, na baixada, espalhavam-se os povoados, onde poucas eram as árvores e muitas casas. Numerosos, difusos, os caminhos, as trilhas cobertas de mato que conduziam até lá. Mas bem sabiam os crótons que não era dado palmilhá-los, e o dom que tinham era da contemplação íntima que se fluía morosamente a distância. Assim quedavam-se frustrados e serenos por tardes intermináveis, quando não tomados por súbita inquietude, debatiam-se em acenos langues. Para que se agitassem, bastava que o vento lhe trouxesse recados da várzea, outros cheiros e rumores. Sonhavam então romarias pela íngreme perambeira, seus trechos entrançados de urtigas ferozes, claros de terra fofa e barrenta. A vertigem da descida compensaria o cansaço  inevitável, os agulhões das pedras e dos gravetos. Imaginavam até gentilezas especialíssimas. As urtigas encolheriam as nocivas mãos. Tampouco seriam molestados pelo gruda-gruda dos carrapichos. Quem sabe a galharia abriria alas para a comitiva passar? Ou algum calango ocioso os guiaria ao acaso sem suspeitar disso?
Talvez levassem os crótons meninos, os pequenos de dois palmos. Seria impossível deixa-los sem proteção de suas sombras adultas. E anteviam-se, ladeira abaixo em vista à cidade, onde havia minúsculos jardins de crótons anões. Eles tinham à volta um cercado de tijolos, disfarçado sob o limo, e em canteiros estreitos de terra escassa, pareciam prisioneiros. Ah humilhação, pensavam os crótons altivos, de porte desempenado e vigorosos tendões, gerados e nutridos no chão livre dos campos. Ali se expandiam desenfreados, sem a coleira dos canteiros e o suplício das podas. Valeria descer àquela terra exígua onde os homens haviam usurpado o chão que lhes pertencia por direito de herança e mora? Não seriam os jardins pequenos cativeiros em que as plantas medravam o susto, contidas pelo medo de encobrir uma janela, invadir a casa galgando o telhado, encarapitando-se pelo corrimão de alguma escadaria? A audácia no caso era pouco eficaz, pois toda luta importava em derrota. A tenacidade do jardineiro zelava pela dócil submissão de todos: que a buganvília não se alcançasse além da janela e tão-somente beirasse o parapeito, que a trepadeira de maracujá ficasse onde estava, sem incursões pelo terreno vizinho, que os crótons se contentassem em um metro de altura e não se vergassem as samambaias sobre as lajes da passagem. Fora dessa disciplina, era o que observavam a cavaleiro de baixada, apenas as casa abandonadas. Nelas reconstruíam as plantas o império subjugado, o verde à brida solta com salpicos e manchas de todas as cores. E adeus geometria torta que se espartilhava, falsa ordem dos jardins traçados em prévios mapas. Se a terra fosse inerte como um papel aberto, e a vegetação não passasse de riscos de lápis?
Projetavam os crótons, descendo à várzea, hospedar-se na casa vazia da esquina fronteira, exatamente aquela que as heras haviam pintados de verde. Ali ficariam à vontade, como na sem-cerimônia em que viviam, a natureza tudo provendo, o humo virgem, a chuva farta, o sol a descoberto. O quintal, vasto, os receberia sem dizer: - “Lugar de plantas decorativas é no jardim”. Ou vamos lá: - “ Que fruta dão vocês?” Pois não tinha sido os homens     a dividir a terra de modo arbitrário, aplicando a sua lógica  a todos os seres?
A casa abandonada chamava por eles, assim entendiam as borboletas que vinham de lá, bailando pelas distancias intermédias. Tê-las sobre as folhas era a alegria incompleta de não segui-las na viagem de regresso. A ânsia lhes sacudia a alma, não os membros, raízes que se deitavam com o peso de âncoras.
Na ventania conversavam os crótons alvoroçados sua linguagem de mímicas sutis. Ah se o vento os pegasse na garupa! Era tão perto e ao mesmo tempo tão longe! Ah, ali mesmo se finariam, sem descer a várzea...
Tantos gemeram, tantos desabafos lançaram que a natureza provedora escancarou os cântaros armazenados atrás de balcões de nuvens. A água, cavoucando o chão dias seguidos, desenterrou-lhe as raízes mais fundas, libertando-os para o deslize na correnteza da enxurrada. Escorregaram então barranco abaixo, tocados por águas turvas, às cambalhotas e encalhos na lama visguenta. Rasgavam-se nas pedras, enganchavam-se nas ramagens secas do declive, mas desciam e o plano logo se espraiou aos seus pés. Um pouco mais, a correr com o impulso emprestado daquele rio efêmero, e ei-los à casa da esquina. Oh quão imensa e diferente lhes parecia agora, diverso o ângulo que jaziam, deitados a seu portão, a fadiga amarrotando o corpo castigado. O portão erguia-se alto, firme, pesado. Era de ferro liso, sem requintes, sem rendados. E bastava ele, imóvel em suas dobradiças de ferrugem, para proibir-lhes  o acesso ao paraíso a que se endereçavam num arroubo de vida.
Ao amainar da chuva e ressurgir do sol, o amplo horizonte acenava-lhes em despedida sobre o morro.                    

Autora: Astrid Cabral. Texto extraído de Antologia do conto do Amazonas. p. 203. 



Marcinh♥

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