"Se o ensino é superior, a pessoa que o abraça é digna de respeito. Assim sendo, desprezar essa pessoa é o mesmo que desprezar o próprio ensino. Isto é comparável a atitude de censurar uma criança, cujo ato é ao mesmo tempo uma censura aos pais. "
( Nitiren Daishonin )

visitas on line

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Trecho de Filha, Mãe, Avó e Puta, de Gabriela Leite parte - two

COCA-COLA COM BOLINHA
"Desce! Desce!", a prostituta gritava para o sujeito. "Desce!" A cena era inacreditável. Visivelmente fora de si, a mulher puxava um homem pelo braço, tentando tirá-lo de dentro de um elevador lotado. Ele era um cliente de um prédio inteiramente dedicado à prostituição, na São Paulo dos anos 70. Ela...Ela era eu.
As drogas sempre rondaram o universo das putas, de uma forma ou de outra, mas nunca fizeram a minha cabeça. Naquela época, porém, não sei bem por quê, acabei me viciando em bolinha. Talvez tenha sido falta de informação ou vontade de experimentar tudo. As meninas daquele edifício, o número 134 da rua Barão de Limeira, costumavam tomar Pervetin ou bolinha. Um dia eu estava cansada e uma colega me perguntou se eu não queria provar metade de uma bolinha. Adorei. Gostei da eletricidade, da ligação. E fui aumentando. Todo dia aumentando. Quando eu parei, já estava numa média de cinco por dia.
Toda manhã eu chegava no prédio, comia um pãozinho fresco com manteiga e tomava um café puro que a Cecília, nossa cafetina, preparava no apartamento onde transávamos com os clientes. Tinha um rapaz que fazia as comprinhas para as meninas; assim a gente não precisava ficar trocando de roupa toda hora para ir na padaria. Eu pedia para ele me trazer uma coca-cola grande. Lá não podia entrar bebida, droga, nada. Mas tinha um homem que passava pelos corredores vendendo bolinhas. Eu amassava a bolinha com o fundo do copo, misturava na coca-cola e mandava para dentro.
Trabalhava ligada. Muitas vezes os clientes diziam para mim:
"Tá com os olhos parados, menina! Tá fazendo bobagem?" Depois do trabalho, ia num restaurante próximo comer, na maioria das vezes, uma saladinha de agrião. E ficava pela noite, chapada.
Num domingo, a zona tava meio parada e acabei tomando várias bolinhas. De repente, vi o elevador parar no meu andar completamente lotado de homens; eles estavam espremidos lá dentro. Peguei um deles pelo braço e disse: "Desce!" Ele disse que não queria descer e eu comecei a puxar o sujeito pelo braço: "Desce!" O homem tentava se soltar de mim, todo mundo começou a gritar comigo para soltá-lo. E eu, que tomava minhas bolinhas na intenção de fazer mais e mais clientes, botei na minha cabeça que ia tirar aquele homem do elevador de qualquer jeito. O sujeito era um cara qualquer, não tinha nada de especial. Eu estava movida simplesmente por uma obsessão profissional. O ascensorista começou a gritar comigo, dizendo que ia fechar a porta, e eu respondi: "Fecha que eu vou quebrar o braço desse desgraçado." Coitado do homem!
Depois do escândalo, eu vi o que estava acontecendo comigo. Muitas meninas já tinham passado por coisa parecida, batido nos seus clientes, e algumas chegaram mesmo a surtar. Resolvi parar. Não era uma história de tanto tempo e eu já estava me desconhecendo. O que poderia vir adiante? Eu não sabia, ninguém sabia. Mas provavelmente coisa boa não era. Com muito esforço, parei.
No começo a produtividade caiu um bocadinho. Mas valeu a pena. Sem as bolinhas, eu conseguia bater papo com os clientes. E conversar com eles é um dos segredos da boa prostituta. No princípio, é difícil entender como funciona o nosso mundo. Com o passar dos anos, porém, consegui decifrá-lo. Ou, pelo menos, parte dele.  
Cliente não se trata como namorado. Mas foi dando ouvido a eles, que sempre dizem o que gostam e o que querem, que comecei a aprender os segredos da profissão. Homens são extremamente frágeis e toda a história de que são grandes conhecedores da sexualidade feminina é uma grande mentira. Eles sabem de suas vontades urgentes e suas fantasias. E estas, na maioria das vezes, são tratadas como algo a ser escondido, uma fraqueza que não deve ser dividida com ninguém. Inclusive e principalmente com as mulheres que eles amam.
Aprendi com os clientes que devemos sempre fingir orgasmo, porque é assim que eles querem. Gostam de acreditar que a mulher que eles estão comendo goza com eles, mesmo a prostituta. Mesmo que seja numa trepadinha de cinco minutos. Existem aqueles que gostam de pensar que pagando um pouco mais a prostituta goza.
Como se o orgasmo dependesse de dinheiro.
O episódio do elevador foi um dos mais marcantes da minha história. Uma história que começou muito antes, quando meus pais, Oswaldo e Mathilde, se conheceram.

fonte: revista Veja.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário